O Bar do Bigode, e como me tornei Cosmopolense de alma e coração
Texto Rogério Siqueira
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Garoto de boné, Sérgio Siqueira, Nice Siqueira, sentadas: Janaína Corte (sobrinha do Bigode), Raquel e Ciomara (amigas de Ana Cláudia) E Ana Cláudia (filha do Bigode) |
Meu pai, José Carlos Nunes de Siqueira, era conhecido em Cosmópolis pelo apelido de Bigode (infelizmente ele se foi em 2004), na cidade manteve alguns comércios entre os anos de 1975 e 1980. A ida da minha família a Cosmópolis (além de mim e de minha mãe, dona Nice Siqueira, tenho dois irmãos, a Ana Cláudia, caçula, e o Sérgio, o mais velho) começou a ser traçada em 1973, quando meu pai, experiente dirigente de lojas de magazine em São Paulo-SP, (cidade onde eu nasci e nós morávamos) recebeu uma proposta irrecusável para dirigir uma grande loja de móveis que seria inaugurada em Campinas-SP, atrás do Fórum, bem no Centro, chamada Manah Magazine, a loja foi muito bem no início mas logo quebrou, os proprietários de origem estrangeira, deram um golpe na praça e se mandaram...Foi nessa época suponho que tenha se iniciado a ligação de nossa família com Cosmópolis. Ocorre que, em Campinas fomos morar em uma casa no bairro do Taquaral, na Rua Cônego Pedro Ponhome, em frente à linha férrea (que hoje não existe mais), á partir dessa época inclusive, me tornei BUGRINO, com muito orgulho. O proprietário da casa alugada pelo meu pai, era o Sr Avelino Boaventura, morador de Cosmópolis (pela mídia, fiquei sabendo que um filho dele foi vereador por aí). Quando a Manah Magazine foi pro buraco, meu pai juntou umas economias, vendeu uma casa que tínhamos no litoral paulista e montou, em sociedade com um tio meu (irmão de minha mãe) a "Fábrica e Loja de Calçados Mustang ", na Avenida Ester, ao lado da "Boutique Chamusca", aqui cabe um parênteses: ( o dono dessa Boutique era um nordestino, do qual não me lembro o nome, mas muito exótico, dia desses, conversando com meus irmãos, eu disse que ele foi o primeiro "metrossexual", antes mesmo de este termo existir...O figura andava só de camiseta baby look, calça de couro colada ao corpo e botas de bico fino, sempre em tons chamativos, ele tinha um SP2 , o único da cidade naquela época, em cujo toca-fitas tocava, entre outros hits da época, “Severina Chique Chique", na voz do forrozeiro barrigudo, Genival Lacerda). E vou te dizer: impressionava prá caramba aquela criança de dez anos que hoje lhe escreve essas memórias. No lado de cima do nosso estabelecimento comercial, ficava a Farmácia da Senhora Darcy, viúva, com cujos filhos, Edna e seu irmão mais velho, que se não me engano se chamava Maurinho, eu e meus irmãos brincávamos, uma vez que os fundos da fábrica e da farmácia era um único terreno onde haviam demolido algumas construções antigas.
Da fábrica, me lembro de dois funcionários, o ''seu" Mariano, um senhor já idoso, muito calmo, que era o "gerente de produção", (ele viria a ser também o pizzaiolo do Bar do Bigode, que citarei mais á frente), além dele tinha um rapaz bem baixinho, órfão de pai e mãe, branquelo, e cheio de sardas, chamado Valdir, que chegou inclusive a morar conosco por algum tempo e passou a ser um "irmão" postiço. Por onde andará esse sujeito hein ? Lembro-me que ele era mais velho que eu e meu irmão, devia ter uns 15 anos naquela época, mas era extremamente bondoso, responsável e educado. O primeiro dos três endereços residenciais de nossa família em Cosmópolis foi na Rua Max Herget, lá tínhamos como vizinhos e amigos, o Fábio, filho do diretor do "Grupo escolar Rodrigo Otávio Langard Menezes", onde eu e meus irmãos estudávamos, não me lembro do nome dele (do diretor) mas me lembro da sua bondade, era um diretor a moda antiga, no melhor sentido da expressão, além disso, me recordo do carinho com que toda sua família tratava o irmão do Fábio, portador de paralisia cerebral e que vivia numa cadeira de rodas. Da Escola Rodrigo Otávio, destaco também o vice diretor, carinhosamente chamado de “Dantão”, casado com a professora Maria Lúcia, sujeito sensacional, quando um aluno tinha algum súbito problema de saúde em horário de aula, ele pessoalmente, com seu fusquinha, levava até em casa, vale lembrar que internet e telefonia celular nem se sonhavam em existir na década de setenta. Além deles, destaco o professor Francisco, que dava aula de português, sempre muito austero e usando uma boina, sua marca registrada.
Outra figura importante, pelo menos para mim, era o Bedel Gentil, franzino, discreto, e amigo de todos os alunos. Lá no Colégio Rodrigo Otávio, iniciei minha “militância política” ao ser eleito vice-presidente do "Centro Cívico", o máximo que se podia exercer em termos de entidade estudantil nos anos duros da ditadura militar. Lembro-me dos colegas de escola dessa época, Adilson Stein, Edna , Clara Ester Rolfsen, Luiz Carlos Galinari e sua irmã, Idabel dos Reis Dinardi, José Luiz Bromel, Graziela Barbosa (filha do Barbosinha, histórico dentista de Cosmópolis) , Magnólia, Adolfo, cuja irmã trabalhava no Hospital Santa Gertrudes , Rachid, cujo pai tinha uma mercearia próxima ao cinema, entre outros. Ao lado da escola na “Praça do Rodrigo” havia um vagão de trem transformado em lanchonete, na praça, usávamos os canteiros gramados da praça para antes e depois da aula, bater uma bolinha...
Outro amigo daquela redondeza era o Julinho, carioca e torcedor fanático do “Mengo” ele vivia com sua irmã e sua mãe que era viúva (o pai do Julinho havia falecido por conta da doença de chagas). Como bons cariocas, eles desfilavam na única escola de samba da cidade (comandada pelo Xande, um paulistano radicado em Cosmópolis, cuja filha era a melhor jogadora de basquete da cidade). Recordo-me de um desfile de carnaval em que Julinho, sua irmã e sua mãe, desfilaram aos prantos, provavelmente com saudade do pai e marido que se fora precocemente. Outros amigos dali : Wladmir, um jovem de origem grega que praticava levantamento de peso, um figura conhecido como “Pink Floyd” , tipo maluco beleza, fã da banda homônima e que vivia com “tatuagens” do Pink Floyd pelo corpo, feitas com caneta Bic (rs), Diógenes, o pessoal do Bar e Mercearia do Ete, e a dona Mercedinha, uma senhora que morava na casa ao lado da nossa .Casada com “seu Cezinha”, ela era bem matuta, muito engraçada e generosa com todos. Nessa época eu, meu irmão, e a nossa turma costumávamos ir nadar no “Poção”, pegávamos “emprestadas” umas abóboras enormes plantadas nos fundos do Hospital , que davam origem a deliciosos doces de abóbora que as mães faziam...rs. Também jogávamos bola num campinho atrás da nossa rua, (nessa época não havia casas após a Max Herget, era só plantação de cana), havia um senhor já aposentado que ás vezes jogava bola conosco e de quem logo fiquei amigo, era o Sr Amaral, fiquei fã dele porque ele sempre ia para o campinho vestindo a gloriosa camisa verde e branca... Assim como eu, ele era bugrino !
Quando a fábrica de calçados começou a ir mal das pernas, meu pai se desfez dela, e montou um bar lanchonete e pizzaria na Rua João Aranha, em frente ao posto de gasolina do Orlando Kiosia (que na época, era o prefeito de Cosmópolis) recentemente falecido, daí nos mudamos para uma casa, na rua dos fundos deste posto de gasolina, a casa aliás, era de propriedade do próprio Kiosia.
Ali, os amigos da família eram o João Spana (ele também era proprietário do local alugado pelo meu pai para montar o Bar do Bigode), me lembro do seu andar meio torto, por conta dos problemas no joelho causados na época em que era zagueiro da Ponte Preta, tendo inclusive figurado no esquadrão da macaca, campeão da divisão de acesso do futebol Paulista em 1969, timaço dirigido pelo mestre Cilinho. Além do Spana tínhamos muita amizade com os irmãos Selani, Álvaro, já falecido e Sérgio, que tinham um açougue ao lado do bar. O Sérgio, se não me engano, ainda mantém um açougue na Rua Monte Castelo. Eu e meu irmão costumávamos também ir comprar doces no bar do seu Herculano e de seu filho João Leite, na Rua Campinas, em frente ao posto do Kiosia e ao lado da lojinha de móveis do Salim.
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Fachada do Bar e Pizzaria do Bigode, na Rua João Aranha. O garoto na Bicicleta é Sérgio Siqueira (filho do Bigode e atualmente Diretor da Federação Nacional dos Bancários), a menina de camiseta vermelha é Ana Cláudia Siqueira (filha caçuça do Bigode), e duas amigas Ciomara e Raquel. Na porta do Bar , ao centro Nice Siqueira, esposa do Bigode, e suas irmãs (cunhadas do Bigode) Maria Cecília e Vera Lúcia. |
Entre os fregueses que iam degustar as pizzas do Bar do Bigode, estava seu Eduardo Monte Oliva, dono do ferro velho que ficava na rua ao lado (aqui uma passagem interessante sobre o ferro velho : um dos nossos colegas de escola morava na Rua do Estádio Telmo de Almeida, o quintal de sua casa fazia fundos com o fundo do ferro velho...pois bem, a turma da escola ia na casa desse fulano, pegava umas garrafas que ficavam armazenadas nos fundos do estabelecimento e iam vendê-las, ao próprio ferro velho...). Também andavam ali pelo bar, os irmãos Belo, Odair e Zé Pivatto. Dos três, tínhamos mais amizade com o Odair, era mais falante e engraçado. Nessa época, o Zé Pivatto era ainda estudante universitário e o Belo passava pelo nosso estabelecimento toda manhã religiosamente, somente para ler os jornais que meu pai assinava. Sempre que encontro com o Zé Pivatto aqui em Brasília ou em São Paulo-SP, costumo relembrar com ele as histórias desse tempo. Meu pai também era muito amigo do seu Jair Kuhne, dono da padaria na Rua Campinas, casado com Dona Isabel, que era muito gente boa e amiga de minha mãe. Outro grande amigo do “Bigode” era o Toninho Baiano, que até pouco tempo atrás mantinha um ferro velho por aí. Nessa época eu já era fanático por futebol, ia todo domingo ao campo do Cosmopolitano, o estádio Telmo de Almeida que ficava duas ruas acima de casa, adorava assistir os grandes jogos desse esquadrão alviverde, que na época rivalizava com o "Botafoguinho", com o time da Usina Ester, (este, ainda não era o Funilense que viria a disputar a terceira divisão do futebol paulista), e com o Vila Nova. Assim me tornei torcedor do Cosmopolitano, e de seus excretes (tradicionalmente os times se apresentavam com dois quadros , o primeiro time e o segundo, uma espécie de aspirante), me lembro bem do goleiro Válber, cuja família era proprietária do único cinema da cidade, do centro avante Ailton, goleador nato, do lateral direito Pantera... Exemplos que poderiam ter trilhado carreira no futebol profissional sem fazer vergonha. No segundo quadro, havia o Claudinho, meia esquerda habilidoso, que trabalhava na farmácia do Átila, farmácia aliás, fundamental para minha recuperação quando tive hepatite...O Durvino, outro funcionário do seu Átila, ia em casa todo dia (durante um mês !) me tascar uma injeção.
Ainda entre os clientes do Bar do Bigode, havia uma turma de caminhoneiros, pessoal que puxava cana para a Usina Ester, gente humilde, com grande sabedoria popular. Me lembro do Jair Bertolo, Anézio Guidolin, Alcindo Galinari, Cuíca, o Marcílio, tratorista aposentado da Usina Ester, Paletó, um negão gente boa e que vivia fazendo bicos para o meu pai, Capatinho, filho caçula do vereador João Carlos Capatto, com quem fiz minha primeira “entrevista jornalística” , aos 12 anos, como trabalho de escola. Entre a turma da Replan que frequentava o bar, muitos inclusive vindos do nordeste e fixando residência em Cosmópolis, tinha o Paraíba, o Salatiel, cuja filha, Edna (já citada) era a melhor aluna da minha sala de aula no Rodrigo Otávio. Aos domingos as atrações do Bar do Bigode eram as memoráveis rifas de Curimbatá, Pintado e outros peixes, que garantiam o almoço da freguesia sortuda.
Agradeço ao meu pai, por ter me dado à oportunidade de já com 12 anos de idade, poder trabalhar, dar valor ao ganho do pão. Hoje, ao saber do encerramento das atividades do Bar do Tabajara, que eu e meu irmão frequentávamos todos os domingos á noite, após a sessão de cinema no "Cine Teatro Avenida", lembro quando íamos fazer um lanche e assistir os gols da rodada, relembro o quanto se aprende de psicologia de vida, com os vários tipos que conhecemos no balcão de um buteco.
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José Carlos Nunes de Siqueira, conhecido em Cosmópolis-SP, como "Bigode" |
Seguindo o roteiro etílico da Cosmópolis daquela época, tínhamos o "Bar do Bambú", amaldiçoado pela “sociedade cosmopolense” cujos donos eram o casal Tião e Dita, ficava próximo a Rua Campos Sales, rua da delegacia e da prefeitura, e onde fixamos nosso terceiro e último endereço residencial. Nossa casa era bem em frente à delegacia e por conta da proximidade, tínhamos muita amizade com o Soldado Joel, e um outro que se não me engano era apelidado de Alemão. Essa nossa casa também ficava perto da Igreja Matriz, me lembro que nesta época, mandaram para Cosmópolis um “aspirante a padre”, para substituir o Monsenhor Rigotte que já era octogenário...Pois, esse sujeito fez sucesso entre as "moçoilas igrejeiras" ... Sumiu da cidade, coincidentemente quando eclodiu um boato de que uma de suas “ovelhas” havia engravidado.
Outra curiosidade desta minha Cosmópolis é a figura do Aldânio, que fazia o papel de rádio da cidade. Quem já passou dos quarenta anos sabe que não havia rádio em Cosmópolis nos idos de setenta e poucos, mas havia o Aldânio, locutor autodidata, que com sua Kombi caindo aos pedaços e munida de um equipamento de som bem humilde, ia para a praça central ás sextas, sábados e domingos, tocar os hits da época e ganhar um troco, fazendo propaganda das casas comerciais que o contratavam. Pois bem, eu e meu irmão éramos nomeados pelo velho Bigode, para em nosso passeio noturno pela praça, conferir quantas vezes o Aldânio havia executado a propaganda do Bar e pizzaria do Bigode, por ele contratada. Algumas figuras folclóricas habitavam o dia a dia da cidade, havia um andante (não gosto do termo mendigo, moradores de rua, na maioria das vezes carregam histórias de vida surpreendentes) chamado Argemiro. Nunca vou me esquecer de como ele agia... O Argemiro não pedia nada, ele só olhava para as pessoas, com um olhar muito singelo, mas não pedia , nunca! Olhava, e olhava, e conquistava a generosidade de quem queria ser generoso com ele, só com o olhar. Dizia a lenda, que ele se transformara num andante e alcoólatra porque teria incorporado uma entidade espírita que não deixou mais seu corpo. Lenda é lenda...
O velho Bigode também era conhecido em Cosmópolis pelos seus Aero Willys. Enquanto moramos por aí, ele teve três, um cinza, um amarelo com teto de vinil preto e um azul, este último, especialmente lindo, e dele mais um episódio curioso. No dia em que ele vendeu o Aero Willys azul, o comprador do carro, cometeu um homicídio, e se evadiu com o carro. Qual o boato na cidade? Adivinhem, quem matou foi o dono do Aero Willys azul, e pouca gente sabia que o carro já não era do meu pai.
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Ana Cláudia (filha caçula do Bigode), eu,Rogério Siqueira (filho do meio), Sérgio Siqueira (filho mais velho) e Dona Nice Siqueira (esposa). |
São aventuras e desventuras, dessa Cosmópolis que ajudou a me formar como pessoa, como cidadão, e para a qual só tenho agradecimentos. Enfim, são muitos causos eternizados em minha memória, desse tempo em que aprendi a ser caipira, e disso muito me orgulho!
Rogério Siqueira
Brasília, 17 de março de 2012
Rogério Siqueira é jornalista, hoje tem 46 anos e atualmente mora em Brasília-DF. Morou em Cosmópolis entre 1975 à 1980. Apesar da distância e dos contratempos da vida que o impedem de voltar a cidade, Rogério tem Cosmópolis na sua história, e muitas de suas melhores lembranças da infância vividas aqui. Muito obrigado pela viajem no tempo através de suas memórias, que tenho certeza também fazem parte da memória de muitos que leram a sua história. Uma Cosmópolis hoje desconhecida por muitos, uma Cosmópolis que faz muitos terem orgulho de te-la como parte de sua história de vida.